Avenida Marginal: Ficções, Ponta Delgada III por Vamberto Freitas

Avenida Marginal: Ficções, Ponta Delgada III por Vamberto Freitas

 

Ponta Delgada, ou a Cidade do Nosso  (Des)contentamento

 

Ando por aí, com a memória magoada, desavindo com o presente, farto de palavras engomadas para o futuro.

Emanuel Jorge Botelho, Crónicas II e agora no 3º volume de Avenida Marginal: Ficções, Ponta Delgada

 

Vamberto Freitas

 

O contexto primeiro. Este terceiro volume de Avenida Marginal: Ficções, Ponta Delgada faz parte de um projecto da editora Artes e Letras, dirigida por Maria Helena Frias proprietária da Livraria SolMar juntamente com o seu marido José Carlos Frias, na cidade com o nome já repetido neste e noutros texto. A edição destes contos iniciou-se em 2019, e logo de seguida em 2020, com o presente volume lançado ainda há poucos dias entre uma numerosa audiência nas Portas do Mar, que já é um lugar referencial, creio, em todos os Açores, e isto com a devida desculpa perante os meus conterrâneos das outras ilhas. Bem sei dos encantos e desgostos com as cidades, vilas e freguesias em todo o nosso arquipélago, mas escrevo aqui de um caso literário com identidade própria. Sim, os livros também têm, para desgosto de alguns entre nós, uma definitiva ligação às suas mais diversas geografias. O tom de cada escritor nestes livros aqui em foco é tão diverso como diversas, felizmente, são as suas vozes para aqui convocadas. De salientar que a coordenadora deste projecto literário faz questão de juntar as várias gerações, a minha, assim como a que ainda está de permeio e as mais novas, num equilíbrio perfeito entre a visão e experiências pessoais de homens e mulheres. Desafia, deste modo, os nossos tradicionais cânones, como o diria o escritor e poeta Henrique Levy, que mais do que ninguém tem lutado para o reconhecimento de tantas escritoras e outras mulheres açorianas que se distinguiram e distinguem em todas as artes, e não só.

Permitam-me que dê um passo atrás, agora com o intuito de tentar sintetizar de como uma cidade é vista através de linguagens criativas por parte de quem absorveu o espírito dos tempos passados e da nossa actualidade. Não existem aqui amores sem fim, como não existem nestas páginas só o lamento de cada escritor ante vidas vividas, ou fingidas, ou essas que o destino levou a caminhos que gostaríamos todos de evitar. A cidade é raramente vista no seu esplendor e pluralismo humano, mas sim através de olhares moldados pela sorte de cada um, pela maneira como assistiram, de perto ou de longe, a alegrias ou tristezas dos que se atravessaram nos seus caminhos, ou por eles e elas próprias vivido. Emanuel Jorge Botelho, citado na minha epígrafe, e que sempre foi um apaixonado pela sua cidade natal, é um modernista agora temeroso da suposta “modernidade” em curso, confessando repetidamente o seu “afastamento” e a “ausência” de um reconhecimento de cidadão cujas raízes tornaram-se uma memória de dias bem mais felizes. Não foi meramente por acaso que é ele quem abre este volume de Avenida Marginal: Ficções, Ponta Delgada, com um brilhante e de todo significante texto vindo das suas inesquecíveis Crónicas II, publicadas há alguns anos.

Estes são contos, tal como anuncia o título, por vezes dando lugar a uma espécie de certas crónicas que oscilam entre a “ficção” e as “realidades” vividas ou testemunhadas por alguns dos seus autores. Em nada contornam o conjunto intencional dos seus autores, enriquecem a seu modo a leitura do livro. Memória, para nós e para os vindouros. Sim, a de como gerações sucessivas julgaram perceber o seu tempo e lugar segundo as leituras que faziam e fazem dos mais variados autores, de como qualquer texto moveu – e comoveu – o seu leitor conforme as suas circunstâncias de vida, sorte ou tragédia. Sabem muito bem de quem vem esta outra noção espanhola, esta verdade meio filosófica, a literatura-outra conjugando saberes e viveres singulares. É disso mesmo que tiramos em cheio das ficções e quase não-ficções de Avenida Marginal. Sobressaem todos os seus autores e autoras, com mais ou menos força, criando o que qualquer boa narrativa nos oferece: momentos de euforia estética, completando-se nos seus pontos de vista próximos ou diferenciados, na temática plural das suas palavras, na poética inerente de quem resolve partilhar ideias e sentimentos sobre o mesmo espaço, uma vez mais, o mesmo lugar e tempo. Uma pequena cidade dos Açores contém em si o mundo inteiro, a história enquadrando o nosso presente, as vidas que nunca passaram do horizonte azul, e depois misterioso, e os que levaram o seu sentir, existencial e sonhador, a outros países, línguas e culturas. Tanto somos construtores em qualquer parte, como destruidores em casa. Por outras palavras, a nossa condição humana não se afasta de qualquer outra cidade ou aglomerado humano. De um pedaço de terra e do que nos parece ser o infinito mar, em nada somos diferentes, em espírito, de outros em qualquer parte, transportamos em nós todos os sonhos, todos os delírios, todos os sofrimentos de quantos vivem numa casa ao lado ou mesmo na rua, dos que falam em códigos linguísticos que levamos tempo a compreender ou não, dos que connosco estão sempre mais perto do que longe. Ficamos e partimos, com alegria e dor, uma cidade que é simultaneamente realidade e metáfora do que está além dos nossos olhos, e nunca da nossa alma.

“Era uma cidade marginal – escreve Paula Cabral no conto “A Mula Sem Cabeça”, da abertura do livro  – no espaço e no tempo. Fechada pelo mar e pela periferia da geografia, embora se situasse no centro do planisfério. Um ponto umbilical, infinitamente desamparado, onde cada habitante buscava, esquecido, uma razão para viver”.

Ponta Delgada, cá vai o cansado cliché, desenvolveu os gestos da modernidade sitiada pelo desespero de uns, e o aparente, quase só aparente, como todos sabem, bem-estar de outros. Há 30 anos que Ponta Delgada é a minha cidade, já vi e nela vivi o que me parece ser o resto do mundo, talvez menos o que um dia, quando já não estivermos cá, também dela reze a História da insegurança generalizada que se desenrolou ao longe durante últimos dois séculos, e que sentimos na alma. Antes disso, foi igual; queriam tirar a nossa liberdade, fomos enforcados publicamente por forças superiores em Angra do Heroísmo, outros criminosos eram igualmente de uma nação vizinha, outros piratas traficantes, assassinos a seu modo: bem-vindos ao mundo em pequena e larga escala. Fomos e somos emigrantes, hoje recebemos imigrantes e refugiados, O medo e os vulcões continuam activos, a minha casa no Pacífico tremia em ameaça real, tal como aqui, de quando em quando. Ponta Delgada, ora vida grossa, ora vida amena. Rondam cá a vida e a morte, alegria e tristeza. Avenida Marginal: Ficções, Ponta Delgada, onde ancoram grandes navios em busca do sossego. Nós, por outro lado, sempre com as fantasias do fantasmagórico jardim além-mar.

Tudo isto está presente em Avenida Marginal: Ficções, Ponta Delgada. Leiam de seguida o The Town, de William Faulkner, outra “ilha” a braços com a sua história e desespero, caída por uma das mais violentas guerras civis, e depois levantada pela vontade dos seus habitantes. Leiam este seu romance da trilogia dos Snopes, a ganância de uns e a dignidade de outros, a cena quando uma mulher linda atravessa a praça local, e, escreve o grande romancista, “os velhos olhavam-na como se ela levasse o corpo por fora do vestido”. Metáforas da beleza. Ponta Delgada – singular e do mundo. Sintam-se em casa com este belo livro.

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Avenida Marginal: Ficções, Ponta Delgada, Ponta Delgada, Artes e Letras, 2022.

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