Apresentação do livro “Sombras e Outros Disfarces”, Emanuel Jorge Botelho, por Pedro Gomes
Agradeço a generosidade do convite do Emanuel Jorge Botelho, meu querido amigo, para apresentar “Sombras e Outros Disfarces”, neste fim de tarde de um incerto Junho, num dos centros culturais mais importantes dos Açores: a Livraria SolMar.
Neste espaço de cultura açoriana – logo de cultura universal – rodeados de livros, de amigos, de escritores, de admiradores da obra do Emanuel Jorge Botelho, de leitores atentos, sob o olhar sereno da Lorena – mulher, companheira, musa e destinatária de tantos versos do Emanuel – e na companhia da Renata e do Júlio – filhos do Emanuel – entregamos aos leitores a última obra deste poeta singular.
O agradecimento que faço por este convite, que apenas a bondade do Emanuel pode justificar, é reflexo da minha responsabilidade como apresentador desta obra, pois estamos perante um dos mais importantes poetas do século XX português.
Não o digo por lisonja ou como gesto de retribuição de amizade, mas convicto do que digo, como leitor da sua poesia, que regista o facto de Emanuel Jorge Botelho ser um poeta editado e antologiado a nível nacional, o que diz bem da dimensão da obra poética.
A pequenez destas ilhas não cerceou a poesia de Emanuel Jorge Botelho, nem lhe limitou horizontes.
A literatura açoriana adquire na poesia de Emanuel Jorge Botelho uma dimensão universal.
Nos poemas trazidos por este livro, o poeta convoca a pergunta central da vida: o que significa viver?
O poeta apresenta duas propostas, a abrir o livro: “rasgar cada dia com um lenho de espelho” e “guardar o tempo dentro da alma”.
Há uma nudez do tempo, que convoca a memória e o desejo, a incerteza na aprendizagem dos outros, o sobressalto da morte – “os dias ardidos e sem pele”, no verso do poeta.
Este desejo é a rigorosa manifestação da existência, da procura, da busca de uma verdade que o poeta expressa assim: “ando em busca de uma réstia de verdade/ e de um ardil de alma/ para dar à ousadia”.
Esta busca, pessoal, íntima, não é uma expressão de mágoa, de desencanto com a vida, de desilusão ou amargura.
Interpreto este livro como um registo, em que o poeta enfrenta o seu percurso de vida, a natural decadência do corpo, a possibilidade da morte, a que “a vida nunca ousa dar-lhe um nome, / por pudor”, como escreve.
Se a vida não ousa dar um nome à morte enunciada, o poeta da meticulosa geografia da palavra não hesita em escrever os seus nomes, assumindo que a brevidade do corpo não interessa, pois ele está dentro da alma.
Há um contundente realismo na poesia do Emanuel. O poeta sopesa a vida, dá-lhe balanço neste livro – como já o tinha feito em “Os ossos dentro da cinza”, o seu anterior livro – e define-se como mortal, ao dizer “quando a gente prepara a rendição”, “é quando, de dentro de uma pedra, /saem as palavras do lume”.
De modo inesperado, as palavras que saem do lume, são a manifestação da esperança, a revelação de uma luz que exorciza a rendição – “o rigor da claridade” – a convocatória do espanto, a procura do lugar a que se pertence, olhando e vendo as coisas, seguindo a exortação de Eugénio de Andrade quando escreve: “passamos pelas coisas sem as ver, / gastos como animais envelhecidos”.
A sombra é um disfarce, diz o poeta.
As sombras do pecado. As sombras das cortinas que escondem as janelas escancaradas. As sombras da incerteza da alba. As sombras da impureza da luz. As sombras que emudecem os olhos. As sombras no coração que não deixam o perdão chegar. As sombras que impedem o voo dos anjos que “chamam as coisas e os frutos / por nomes que a gente desconhece”.
A sombra não é a noite. Porque a noite permite a descida dos anjos à terra, de asas recolhidas.
“O que faço eu com a minha sombra, / ou com o que já é da morte do meu corpo?”, pergunta o Emanuel.
Eu respondo: procurar o prodígio da luz. Como o poeta confessa, no poema “Técnicas de combate”, do seu anterior livro: “não gosto de esquinas , / sempre suspeitei de lugares / que cortam a sombra”.
“Bem-aventurados os portadores de frestas, pois deixarão passar a luz”, como escreveu Elena Lasida, economista e teóloga.
No poema “Rogação” o poeta, perante a incerteza dos dias que faltam nas nossas vidas, do gesto de oferecimento da outra face, das rugas da pele que já permitem inscrever os nomes dos outros, dos lugares e das coisas que constroem as memórias, pede: “tem piedade de mim, pai, / eu sei muito pouco / das coisas do lume”.
Do lume que purifica, do lume novo que o tempo pascal renova num compromisso de esperança, do lume que destrói, possibilitando o renascimento. Do lume que é luz?
Sim. O poeta não convoca para a sua poesia o fogo aniquilador, o fogo da morte arrasadora, da destruição dos corpos e das memórias.
O pedido de piedade é feito a um pai – “meu pai” – que na minha interpretação, é uma invocação divina, sustentada o título do poema. Um Deus que o poeta invoca sem O nomear por um dos Seus muitos nomes, limitando-se a designá-lo por pai – Aba, expressão bíblica com origem no aramaico “ábba”, que significa “pai” e foi usada por Jesus no momento da morte.
Esta prece do poeta recorda-me palavras de Etty Hillesum, uma jovem judia, escritas no seu diário, entre Amesterdão, em 1941 e Auschwitz, em 1943, local onde veio a morrer, vítima do holocausto:
“O sentimento da vida é tão forte em mim, tão grande, tão sereno, tão pleno de gratidão, que não procurarei por um instante exprimi-lo com uma só palavra que seja. Tenho em mim a felicidade tão completa e tão perfeita, meu Deus” (Etty Hillesum, Um itinerário espiritual, Paul Lebeau, Editorial AO, pg. 151).
Este é o livro de um poeta sereno.
Há muitos anos, era eu um jovem aluno do Liceu, o Emanuel Jorge Botelho, em resposta a uma pergunta que lhe fiz numa sessão literária na Tabacaria Açoreana, disse que não escrevia para os leitores.
Na altura não percebi a resposta e até a achei estranha.
Hoje, com a maturidade dos anos vividos, compreendo-a muito bem.
O poeta não escreve para os outros. O poeta não pode escrever para os outros.
As palavras transformam-se quando as murmuramos, na calada dos sentidos
Cada leitor encontrará no poema o seu poema. As palavras que o poeta terá escrito para si.
A geografia das palavras, das sílabas que dão ritmo ao verso, percorre cada cidade das nossas vidas. Nenhum leitor receberá o poema da mesma maneira.
Cada livro de poemas é sempre um epistolário muito pessoal.
Leio os poemas depressa, como se a poesia pudesse conter um guião para o dia que ainda não chegou.
Dou a este livro os meus olhos como uma casa, com janelas que deitam para o mundo.
O espanto do mundo chega em cada verso, em cada palavra que tem o sabor do pão para os sentidos.
Parafraseando Maria do Rosário Pedreira, ter-te comigo, Emanuel, é “poder andar descalço pelo mundo”.
Pedro Gomes
Livraria Solmar, 20 de Junho de 2022