
Apresentação do livro “O Quarto do Pai”, de Maria Brandão, por João Nuno Almeida e Sousa
O último parágrafo de O Quarto Do Pai impele a uma reflexão sobre um livro aberto para a condição humana. Na sua leitura somos atirados ao passado longínquo processando no presente uma obra que permanece debaixo da pele depois da derradeira página. Uma narrativa que fica também no coração de quem a lê, como simboliza a vinheta que encerra a cuidada edição da Companhia das Ilhas.
Partilhar uma leitura pessoal é assim apenas o começo de um diálogo, o que se faz sem camuflar a certeza de que este livro não será indiferente para os seus leitores.
Na viagem que fazemos com esta obra acabamos num passado longínquo que nos dá sentido ao presente no processamento desta poderosa narrativa: Na atmosfera niilista de fim de século, Nietzsche sentenciou: – «Deus Está Morto». Com essa proclamação o século XIX chegaria ao fim, e com ele o próprio Nietzsche, que morre em 1900. Mas o ar do tempo, esse mudou para sempre. O decadentismo acentuado do Século das Luzes atinge o seu pináculo com Nietzsche cujas obras rasgam o cordão umbilical com o passado deixando à humanidade a responsabilidade do seu destino. O que Nietzsche proclama, – com a intensidade de uma ruptura existencial e com ondas de choque que perpassaram todo o século XX – , é que o sentido último da existência deixou de ser Deus. Não mais justificações metafísicas e verdades eternas. Não mais a tutela divina sobre o mundo e a humanidade. Os homens estão entregues à sua sorte, à orfandade do seu destino e, na ausência de um padre eterno a quem recorrer, Nietzsche aponta o modelo de superação: o Além-homem. Esse Übermensch representaria a evolução da humanidade centrada no indivíduo livre de qualquer moral religiosa ou metafísica. Essa evolução libertária de uma mentalidade de séculos de servidão, de um homem livre de mitos supersticiosos e de cosmogonias primitivas, teve um impacto profundo: o homem passou a ser o centro do Universo. A ruptura de Nietzsche teve estrondoso choque na Ciência, nas Artes e na Literatura. Basta evocarmos, respetivamente, que Sigmund Freud, Edvard Munch e Knut Hamsun, todos eles foram leitores atentos de Nietzsche.
Dada esta volta vou ao ponto que interessa: – A Literatura que hoje se faz e que lemos é ainda aquela que emergiu dos escombros dessa evolução. É a partir daí que a Literatura deixa de se circunscrever à épica, à poesia e às hagiografias. O seu barro é agora a humanidade; O romance a tela que retrata o homem na sua individualidade. Não é acaso citarmos Knut Hamsun. A sua obra – Fome , publicada nas vésperas do século XX, é um marco de modernidade na literatura. Fome, é a narrativa de um homem só, sem nome, à deriva pela cidade de Kristiania, entregue integralmente ao seu destino para sobreviver. É um livro que mudou a mentalidade dos escritores e foi uma referência de contemporaneidade para leitores. Só no século XX o romance como género literário assume essa enorme popularidade porque a literatura faz-se agora do mesmo barro que é comum a toda a humanidade. Os escritores abandonaram as epopeias de heróis míticos, os cancioneiros de hinos folclóricos, as cadernetas de santos e mártires dominicais. Centraram a sua escrita na psicologia das personagens e no existencialismo. Se se pode falar de heróis na literatura moderna eles são homens comuns que enfrentam os desafios da existência como todos nós. A moral da estória não é mais transcendente, mas sim ética e esta, como resumiu Deleuze, é estar à altura do que nos acontece.
O Quarto Do Pai é mais do que uma viagem à volta do quarto. É uma verdadeira expedição às alturas do que acontece a um homem que enfrenta o infortúnio de um acidente que altera o seu destino. Contudo, – «É um romance. Não é um livro de memórias», como avisa Ian McEwan, noutro contexto do seu último livro : Lições. O exercício literário que a escritora Maria Brandão executa é de elevado risco: uma obra literária contada na intimidade da primeira pessoa que não é ela nem é a sua circunstância. Não se trata de explorar o filão da auto-ficção, tão em voga depois da série seminal de livros auto-referenciais, cujo paradigma são os volumes – A Minha Luta de Karl Ove Knausgaard. Nem tampouco de retratar com estilo um acontecimento, como o faz a Annie Ernaux com os seus livros inteiramente biográficos. O Quarto Do Pai, é um terceiro género e, como toda a obra de Maria Brandão, é singular pois o que escreve nem nos livros de estilo existe. Contido em 100 páginas é um grande livro que atravessa o fuso do tempo e retrata épocas que se resgatam à memória ou estão no nosso imaginário colectivo. Atente-se na citação seguinte que rebobina uma nostalgia da nossa memória colectiva: «Por isso, lá vou eu espalhar uma dúzia de cadeiras no amplo terraço de cascalho em frente à nossa casa de férias, abrir o capô do Citroën 2CV cor de café com leite, pôr a TV Sanyo portátil em cima de uma mesa e ligá-la com cabos à bateria do carro. Não há energia eléctrica. Sob a folhagem das árvores com a bênção do halo esbranquiçado do Petromax, reunimo-nos todas as noites para conversar, jogar Sueca, Monopólio, Glória ou Mikado, depois de observado o ritual diário: acordar com os pássaros, comer pão caseiro com manteiga ao pequeno-almoço, dar um mergulho matinal no calhau mais próximo, subir a pé os duzentos metros de ladeira silvada entre o mar e a casa, tratar dos animais da quinta, almoçar peixe fresco com batata cozida e salada, beber cerveja, fumar e dormitar na rede entre as árvores, folhear revistas e livros de cães e de caça, ir à cidade comprar blocos de gelo para conservar os víveres em frigoríficos improvisados, mergulhar de novo no mar, aproveitar as rochas desertas e o silêncio, sentir o frescor de um bom banho de mangueira, e jantar algo ligeiro para não engordar. Só este ano veio a moda da televisão, andam todos loucos com a Gabriela, Cravo e Canela, não arriscam perder os episódios e nas redondezas sou o único a ter e partilhar um aparelho com os vizinhos. «Seu Nacib, moço bonzinho», ronrona a mulata, e os primos remexem-se no assento das cadeiras, cruzam e descruzam as pernas, bufam com o calor que lhes sobe pelas virilhas. As primas, mais comedidas, abanam-se com as mãos e suspiram sempre que o ecrã se enche com o charme de Mundinho e o atrevimento de Tonico Bastos, excomungam o despudor da protagonista, franzem os lábios perante as carnes expostas das meninas do cabaré de Maria Machadão, deliram com o guarda-roupa anos mil novecentos e vinte. A minha filha, encolhida atrás de uma árvore como um animal acossado, não se manifesta na presença das visitas, mas deixa-se deslumbrar pelo comportamento rebelde de Malvina, mimetiza-lhe o cabelo à la garçonne e responde torto como nunca à mãe.»
Além de olhar para o retrovisor O Quarto Do Pai é também uma obra literária de modernidade onde o leitor tem espaço para reflectir sobre a condição humana e sobre as lições que são comum a todos os mortais. Em três andamentos percorremos uma vida de paixões, de falsidades cometidas pelo destino, de interrogações sobre o sentido da existência. O absurdo não tem sentido nem ordem, como sabemos. Sentido tem para todos nós a pulsão de Liberdade. Numa das passagens o narrador desabafa o paradoxo da sua condição : «Estamos no dia em que se comemora a Liberdade, quando fico privado de parte de mim.» E aqui encontro o fio de ariadne que dá a pista para a chave que abre a porta para outra dimensão humana que o livro encerra: a Dignidade. Quando somos privados da Liberdade, por estarmos manietados pela doença, por nos encontrarmos internados num hospital, ou até mesmo pela força bruta de uma prisão (por motivos políticos, como acontece no livro), já não é a Liberdade perdida que nos define como homens, mas sim a Dignidade com que estamos à altura das circunstâncias. E é essa Dignidade, ou falta dela, que define também uma sociedade. Essa é uma leitura subliminar que fica incutida no subtexto para inquietação do leitor. O Quarto Do Pai tem quatro paredes forradas de factos verídicos, mas é literatura. Recordo o aviso tomado de empréstimo a Ian McEwan – «É um romance, não é um livro de memórias.» Ficciona sobre factos reais com momentos delirantes, muito próximos do género fantástico, em passagens de planos temporais, entre o presente e o passado, com uma elegância técnica que prende o leitor a esse equilíbrio. É de equilíbrio também que se faz a vida : – nem sempre um vale de lágrimas, nem tampouco um mar de rosas. É pois entre o Drama e a Comédia que entramos na psique deste homem singular. Por vezes no virar de página passamos do soturno peso dos anos ao episódio picaresco de juventude que corta as voltas à tristeza.
Veja-se como no Quarto do Pai a banda sonora alterna de um Adágio em meditação funesta para um Allegro cantante dos prazeres da vida no mesmo alinhamento: – «Estamos no dia em que se comemora a liberdade, quando fico privado de parte de mim. De pálpebras cerradas, no quarto escuro que me foi destinado, imagino a minha perna a sobrevoar o hospital, ciente da sua autonomia. Paira como um milhafre, recua, dança a valsa, faz acrobacias, goza o vento, desloca-se para baixo, para cima e para os lados, sobe verticalmente enfunada como um balão de hélio fugido das mãos de um menino, vigia pela janela este corpo decepado, arrebita-se e revolteia no ar, alegre por poder seguir viagem sem lastro que a azucrine. Ah, se a madrinha fosse viva, esta perna impertinente não escaparia a um desígnio de maldade, padeceria as agruras do lume, tornar-se-ia um presunto ricamente fumado, ou assaria no fogão de lenha, passada e repassada até dela não restar patavina. De pálpebras cerradas, vejo o meu primo-irmão mais divertido com uma farda da tropa, o boné e a exuberância a mascarar a carecada e o nervoso da partida, o barco à espera de o levar para a guerra, a guerra de que fui excluído por conta da paralisia. De pálpebras cerradas, vejo-o estraçalhado por uma mina, o corpo em pedaços no solo da Guiné, o aerograma com carimbo de 4 de Fevereiro de 1969, dois dias antes da «ocorrência gloriosa em defesa de Pátria», a relatar à minha mãe a actividade operacional reduzida, a esperança de voltar a casa bem explícita: «Se Deus quiser, em Maio estarei na nossa rica terra para vos abraçar.» Pum, a bondade e a simpatia de luto para sempre. De pálpebras cerradas, reencontro o meu pai, preso entre quatro tabuinhas, o pescoço sem movimento, o braço esquerdo paralítico, a icterícia a tingir-lhe a pele de amarelo, a cirrose a comer-lhe o fígado. «Pai, fizeste-me uma falsidade», soluço. «Devemos ser resignados», responde-me, acabrunhado e em absoluto paradoxo com a atitude de há um dia. «Resignados porquê, pai?» pergunto-lhe sem mostrar grande empatia pelo seu sofrimento, a palavra resignado a tresandar a água-benta, a provocar-me uma irritação maior do que a angústia que sinto. «Uma pessoa nasce para morrer, a terra que se encarregue de dar cura a tudo isto, como Deus quer», conclui ele, apontando para si com o braço bom tal como o rapaz do hospital. Caem-me as trombas ao chão. Sempre detestei a igreja, os padres e as freiras, os acólitos e os devotos, as benzeduras e as rezas, as missas e as procissões, os cânticos e os incensos, os sermões e os ritos. Nunca acreditei na existência de Deus como guia. Nunca acreditei no pecado e na confissão, na culpa e na penitência como formas de moldar o meu dia-a-dia. De pálpebras cerradas, vejo os bocados do meu primo morto e a conivência do meu pai com o seu destino, vejo-me dentro das grades da cama, a perna em falta a inibir-me de sair. Dou por mim fixado na imagem de um Deus castigador, um Deus que nos priva do que mais gostamos, que espera o nosso momento mais frágil para nos atingir, que enfia a lâmina bem fundo como o pior dos inimigos. Dou por mim aterrado pelo reconhecimento dessa possibilidade, pela consciência de que o inferno é real e acontece em vida, por perceber finalmente a grande metáfora contida no catecismo. A morte fulminante é o prémio para os bons, o céu tão pretendido, a única forma de prevenir a doença grave ou evitar a miséria da velhice, a provação derradeira, o castigo tão temido. No meu caso, que castigo maior haverá do que não poder andar campos fora na companhia dos meus cães, a espingarda carregada ao ombro, os sentidos suspensos no movimento dos coelhos e das codornizes? «Sabes como se parece um médico com um calceteiro? Tanto um como o outro tapam os enganos com terra», martela o meu pai das suas tabuinhas, «Tens sorte que este teu médico não se enganou, por isso deixa-te de tretas. Conforma-te e vive.» Obedeço-lhe como posso e logo me sinto outro, lúcido e pronto para desafiar as jovens enfermeiras e auxiliares que se ocupam de mim. Circulam dentro e fora num vaivém constante de nádegas mais ou menos redondas, mais ou menos empinadas, as formas cingidas por calças de pano branco, uma sombra de cueca escura aqui e ali. Analiso-lhes os traseiros à medida que entram no meu campo de visão e se colocam junto à cama à distância de uma apalpadela. Não me atrevo a tal, nem sequer avanço um piropo, os tempos não estão para graças e basta um gesto descuidado ou uma palavra em falso para de repente se irritarem comigo. Consolo a vista e a alma com os atributos das pequenas em silêncio, mas o brilho dos meus olhos trai-me e elas desatam a rir. «Vê-se que o senhor gosta de mulheres. Muito bem, isso é uma raridade hoje em dia! O homem e o leão são espécies em extinção», atiram-me provocantes, seguras de que sou inofensivo. «Grraurrr», correspondo, arrancando-lhes exclamações e gargalhadas e estabelecendo o tom para os dias seguintes.»
João Nuno Almeida e Sousa, Livraria Solmar, 26 de Outubro.