Texto de Apresentação “Avenida Marginal, Poesia” por Pedro Gomes
Agradeço o privilégio de apresentar a edição da “Avenida Marginal | Poesia” – a primeira de quatro edições dedicada à poesia – “em memória de Emanuel Félix, poeta maior desta terra, poeta grande deste mundo”, como a editora, Maria Helena Frias, escreve como invocação da obra, que reúne catorze poetas para uma avenida de palavras: Álamo Oliveira, Ana Paula Inácio, André Tecedeiro, Daniel Gonçalves, Eduardo Bettencourt Pinto, Eduíno de Jesus, Emanuel Félix, Emanuel Jorge Botelho, Inês Dias, Leonardo, Luís Manuel Gaspar, Manuel de Freitas, Renata Correia Botelho e Urbano Bettencourt.
Uma cuidada e sedutora edição, com design de Vítor Marques e desenho da capa de Luís Manuel Gaspar, artista plástico e poeta que, para além capa, assina três poemas desta edição.
O meu privilégio ainda é maior, pois tive o gosto de escrever um conto para a primeira “Avenida Marginal” e a poesia de Emanuel Félix acompanha-me deste sempre.
Numa apresentação, não é suposto o apresentador falar de si ou das suas preferências literárias, mas como estamos rodeados de livros, de amigos e de leitores, sei que perdoarão o facto de revelar que a poesia de Emanuel Félix me encontrou, teria uns quinze ou dezasseis anos, na Tabacaria Açoriana, local de tertúlias literárias, de bom café, boa conversa e muitos livros, pela mão do José Carlos Pacheco.
Estudava no Liceu e gostava muito da Tabacaria. Não é que não gostasse do Liceu, mas sei que me percebem…
Lembro-me como se fosse hoje: peguei numa antiga edição da “A palavra O açoite” (1977) e fiquei deslumbrado com os versos de Emanuel Félix. O preço era um problema, pois vida de estudante deslocado de Santa Maria impunha contas certas. Dei balanço à carteira e confesso que ainda pensei em roubar o livro. Mas, o meu lado de futuro advogado, impôs-se. Paguei o livro, do qual não me separei, nem sequer quando fui estudar para Lisboa.
Emanuel Félix acompanha-me até hoje, embora nunca o tenha conhecido, o que parece quase impossível numa terra pequena como a nossa.
À maneira de Emanuel Félix, posso dizer que um poema amado por um homem não é um poema, mas um poema amado por um homem (inspirado no poema “Pedra-poema para Henry Moore”).
É uma alegria imensa evocar e celebrar Emanuel Félix, poeta da perfeição do verso, da depuração da palavra, das partidas e regressos, do misticismo eclético, da essencialidade das primeiras coisas, do humanismo e da liberdade.
Sempre da liberdade.
Ele “cuidou a luz da manhã”, como anjo da guarda que paira no poema inédito, de 1969, que abre esta Avenida aos sentidos.
Este dia inaugural, em que nos reunimos ao redor da poesia, coincide com a celebração dos 95 anos de vida de Eduíno de Jesus, no dia 18 e do centenário do nascimento de Eugénio de Andrade, no dia 19, há dois dias.
Como escreveu Eugénio de Andrade, “um verso é uma companhia para a vida inteira”.
Com os poetas que amamos, vivemos toda uma vida em cada verso, em cada palavra escolhida.
Acredito que não escolhemos os poetas que amamos. São os seus versos que nos escolhem. Não importa o lugar ou o tempo. Com eles, escrevemos uma memória em palavras, até ao dia em que até essa memória se desvanecerá.
Annie Ernaux diz: “tudo se apagará num segundo […] Nem eu nem mim. A língua continuará a pôr o mundo em palavras. Nas conversas à volta de uma mesa seremos apenas um nome, cada vez mais sem rosto, até desaparecermos na multidão anónima de uma geração distante” (“Os anos”).
Nesta Avenida Marginal, debruçados sobre o mundo, atentos aos rumores do vento, com Álamo Oliveira, pedimos a paz, hoje para a Ucrânia, amanhã para qualquer outro lugar “com um povo que não fala”, pois “a pátria que lhe tiraram é o cais / que separa a morte da vida”.
Álamo Oliveira, num poderoso poema, denuncia o despotismo, o apagamento da memória colectiva que amordaça as palavras ou o desejo de revolta. “Tudo será apagado sem mais remorso / sem mais perfume”, escreve o poeta.
Nunca mais o silêncio, proclamamos com ele, contra todas as formas de opressão, contra as esporas cravadas na liberdade.
Sim, porque a liberdade tem sempre de ser defendida.
Nas margens da Avenida, “ser a ilha, sem a amarra do primeiro instante”, diz Daniel Gonçalves, é a impossível premissa de vida.
Nas ilhas, o primeiro instante é como uma marca de fogo na alma: ficamos enfeitiçados para a vida. O caminho que percorremos, a avenida que escolhemos para cada verso “é todo o mar que nos engole” (Daniel Gonçalves). Ou o mar com que sonhamos.
Da avenida, mirante para o mundo, vemos que os “pobres conversam / com o vento” (Eduardo Bettencourt Pinto) sacudindo a míngua do soldo que o mar não dá e que a terra não permite.
Conversar com o vento, escutar a distância, medir o destino com a firmeza do pulso, destapar as nuvens com o sonho nosso de cada dia, como pão para o desejo.
O desejo que se pode manifestar na sensualidade quase erótica da “princesa que foi sequestrada… / passeia nua – excêntrica! – na balustrada / do claustro, sem olhares de homem que a vigiem” (Eduíno de Jesus) ou no desalento da espera.
Na ilha, espera-se sempre.
Esperar. Muitas vezes é o que resta. “Guardamos, no linho o doer do tempo / o mar é nossa cicatriz” (Emanuel Jorge Botelho).
Como resistir à espera, quando só resta uma esperança desesperada?
Os ilhéus aprenderam, ao longo dos séculos, a arte da resistência: contra as inclemências da natureza, a incompreensão dos homens, para quem as ilhas são apenas lugares remotos, a desatenção dos poderes, que entendem as ilhas como um custo desnecessário.
“Dá-te inteiro como um barco / e espera que te chamem / nunca vires as costas ao mar”, proclama Renata Correia Botelho, nestes três belíssimos versos.
Estes versos são uma declaração de amor incondicional – como só o amor pode ser – e um programa de vida.
O barco enamora-se das ondas, escuta o chamamento das marés, segue o seu destino.
Enfrentar o mar é o que os homens devem fazer, pois só assim podem ser livres.
Os que viram as costas ao mar ficam prisioneiros da incerteza.
E quando nos falta a ilha?
A partir de Belmonte, interior profundo, Urbano Bettencourt formula uma explicação: “em Belmonte o mar / é só de imaginá-lo um olhar ausente”.
Mesmo longe do mar, sabemos que ele está à nossa espera. O sal tempera-nos a esperança: “no horizonte ondeado não passam barcos. / Apenas um risco de asa / pode assinalar ainda o caminho de outra casa” (Urbano Bettencourt).
Nas partidas do mundo, as memórias sabem a sal.
“Não me apetece ainda dizer adeus. / há partidas que adormecem. e não acordam”, como escreve Inês Dias.
Cada um de nós pode dizer, apenas, com Adília Lopes: “sou deste lugar / como as árvores / e as casas”.
As palavras já não me cabem na mão para dizer o mundo.
Pedro Gomes